CIÊNCIA

O financiamento da ciência


Reitora Maria de Lurdes Rodrigues


MARIA DE LURDES RODRIGUES

Reitora



Nos últimos anos, diria desde 2011, temos assistido a uma instabilidade nas políticas de financiamento da ciência, que coloca em risco o crescimento equilibrado e sustentável do sistema científico em Portugal. Isto é, coloca em risco aquele que é o principal objetivo da política de ciência garantir a produção continuada de conhecimento. Em momentos de incerteza, como os que atualmente vivemos, importa lembrar os princípios básicos do financiamento da ciência, as exigências que o distinguem de outros tipos de investimento público. Lembrar que a política de ciência não se pode confundir com a política económica ou de inovação.

Os traços distintivos, ou as suas especificidades, podem ser resumidos em cinco pontos.

1. O sistema científico está ainda em construção e consolidação, ao contrário de sistemas públicos como o da saúde, da educação ou do ensino superior, já constituídos. Construir um sistema científico é fazê-lo crescer, criar massa crítica através do investimento público e da afetação de recursos. Por essa razão são decisivas as políticas de formação avançada, de emprego científico e de financiamento de projetos e instituições. A construção do sistema científico exige instituições fortes, qualificadas e internacionalizadas, à semelhança do que se passa nos países democráticos mais desenvolvidos. O investimento público em ciência, medido em percentagem do PIB (despesa executada e financiada), e a meta de 3%, continua a ser um objetivo decisivo para a construção e consolidação do sistema científico. Em Portugal, ainda não chegámos lá.

2. O financiamento em ciência deve ser competitivo, baseado num sistema de avaliação ancorado em critérios de qualidade rigorosos e com referência a padrões internacionais. As decisões de financiamento de qualquer iniciativa, seja de formação avançada de recursos humanos, de desenvolvimento de atividades de investigação, de criação de infraestruturas de informação ou de produção de conhecimento, de divulgação ou publicação de resultados, são sempre alicerçadas em processos competitivos de avaliação por peritos das diferentes áreas. Por esta razão é necessário assegurar a estabilidade, a qualidade e o rigor dos processos e metodologias de avaliação.

3. O desenvolvimento científico não pode ser politicamente planeado com definição de prioridades disciplinares ou outras. O princípio da autonomia e da liberdade científica dos investigadores e das unidades de investigação, na definição e identificação dos temas ou objetos da sua atividade, tendo em consideração a agenda dos problemas científicos e o estado da arte do conhecimento nos diferentes domínios disciplinares ou pluridisciplinares, é essencial. O desenvolvimento científico em Portugal, como em todos os países do mundo desenvolvido, foi tributário da liberdade e da autonomia dos investigadores e das instituições na definição da agenda, dos temas e dos problemas de investigação, em todas as áreas de conhecimento, das ciências fundamentais às ciências sociais e humanas.

4. A sustentabilidade e o desenvolvimento do sistema científico requer o equilíbrio de todas as áreas científicas, da investigação fundamental, da investigação aplicada e do desenvolvimento tecnológico. Requer também a diversidade unidades de investigação, universidades e empresas. A ciência ocupa-se, antes de tudo, de produzir conhecimento, saber e informação. O que distingue a atividade científica é justamente a produção de conhecimento que ninguém sabe (ainda) para que serve, nem que produtos, processos ou inovações podem com ele ser desenvolvidos. A exigência de que toda a ciência seja aplicada, útil e rentável, orientada apenas para resolver problemas das empresas, é uma armadilha que conduz ao dispêndio de recursos sem garantia de retorno científico ou económico. Na realidade, em Portugal, os setores da economia que mais se modernizaram devem-no, em boa parte, à articulação que souberam estabelecer com os centros de investigação e com as universidades.

5. Sem prejuízo dos princípios da autonomia científica e do financiamento equilibrado de todos os domínios e áreas científicas, os vários países realizam, simultaneamente, investimentos estratégicos em ciência, por decisão ou escolha política, motivados pela agenda dos problemas sociais, económicos, ambientais, energéticos, ou motivados pela necessidade de responder a emergências de saúde pública, de catástrofes naturais e de conflitos geopolíticos, ou ainda motivados por apostas no desenvolvimento de áreas emergentes do conhecimento científico. A forma de concretização das escolhas políticas de investimento estratégico em ciência pode assumir diferentes configurações, desde o lançamento de desafios à comunidade científica para que concilie a agenda científica com a agenda dos problemas, até à identificação de capacidades instaladas, isto é, a concentração de recursos humanos excecionais, como por exemplo investigadores ou unidades de investigação de elevado potencial reconhecido internacionalmente. Porém, a eficácia e os resultados serão tanto mais positivos quanto mais longe se levar a ponderação científica e a avaliação da qualidade dos projetos, envolvendo a participação de especialistas externos. As políticas de financiamento da ciência que não salvaguardam estes princípios, comprometem a sustentabilidade e o equilíbrio do sistema científico.