QUALIDADE DE VIDA

Desigualdades sociais e bem-estar nos municípios



Rosário Mauriti 1

ROSÁRIO MAURITTI

Professora  Iscte Sociologia e Políticas Públicas

Investigadora CIES-Iscte



As desigualdades sociais e o bem-estar da população são objeto de análise no estudo produzido no âmbito do projeto TIWELL que, privilegiando o cruzamento entre diferentes métodos de investigação, deixa pistas para novas políticas públicas locais de proximidade.




Qual o objetivo do estudo “Territórios de bem-estar: Assimetrias nos municípios portugueses”?

Vivemos, em Portugal, num contexto de fortes desigualdades. No plano teórico e empírico internacional, é muito claro que as desigualdades são um fator inibidor do desenvolvimento dos países. No âmbito deste projeto, recolhemos informação para compreender o impacto das desigualdades a nível nacional, mas sendo este um tema complexo, levou-nos a privilegiar uma abordagem intranacional.

Em relação à qualidade de vida nos municípios portugueses, tentámos estabelecer relações multivariadas entre indicadores de desigualdade e de bem-estar a partir de um conjunto que o Instituto Nacional de Estatística (INE) tem vindo a produzir.

Do ponto de vista das políticas públicas, é importante termos um retrato mais agregado sobre os grandes desafios colocados aos territórios, quer do ponto de vista do seu progresso, quer do seu desenvolvimento e coesão, quer, sobretudo, daquilo que são as condições de vida e bem-estar das populações.

O modelo conceptual TIWELL foi projetado numa árvore: na raiz, estão representadas as variáveis explicativas das configurações do bem-estar, enquanto os ramos correspondem a um conjunto de indicadores com interconexões no plano empírico. Tivemos, como fio condutor e balizador das nossas opções, as teorias e uma experiência e domínio sobre análise estatística de forte sofisticação.

 

A que categorização dos territórios conseguiram chegar?

Para analisar as desigualdades territoriais sobre condições de vida e bem-estar, os municípios de Portugal continental foram agrupados em cinco tipos de território com características relativamente homogéneas em termos de densidade urbana, distribuição etária da população, perfil socioprofissional e de qualificações, e padrão de rendimentos. Chegámos, assim, à seguinte tipologia: Territórios Industriais em Transição, Territórios Intermédios, Territórios Urbanos em Rede, Territórios Inovadores e Territórios de Baixa Densidade.

 


É importante termos um retrato dos desafios colocados aos territórios do ponto de vista das condições de vida e bem-estar das populações



Qual foi o universo estudado?

Analisámos as caraterísticas culturais, socioprofissionais, de género, idade, classe social e habilitações. Ao nível do bem-estar, foram analisados os recursos, as condições institucionais e os serviços que os municípios têm disponíveis para as pessoas. A base de referenciação empírica foram os municípios de Portugal continental e a informação foi desagregada consoante os indicadores de que dispúnhamos. Também utilizámos dados do European Social Survey e da Organização para a Cooperação Económica e Desenvolvimento (OCDE) para projetarmos uma comparação europeia.

 

Que metodologias foram usadas?

Em primeiro lugar, fizemos um levantamento de dados junto de fontes oficiais, como o Eurostat e a OCDE, e também em estudos, sobretudo americanos, que medem as questões da felicidade numa perspetiva longitudinal.

Fizemos o mapeamento para caracterizar o bem-estar nas suas múltiplas dimensões. Houve a preocupação de selecionar variáveis de indicadores que pudéssemos depois operacionalizar em diferentes escalas de observação, quer a nível municipal, quer a nível do país, e depois numa perspetiva comparativa internacional.

Depois fizemos uma análise estatística para agregar as dimensões e reduzir a amplitude dos dados. Realizámos então análises sistemáticas multivariadas, tentando associar as configurações de desigualdade com as configurações de bem-estar, criámos alguns índices e fizemos uma agregação com base em análise de clusters, que nos conduziu à construção dos territórios de bem-estar e desigualdade.

Uma das grandes novidades deste estudo foi identificar territórios inovadores, que, apesar de agregarem uma pequena minoria de municípios, têm um grande impacto no plano de capacitação nacional e no nosso relacionamento com outros países.

 

Modelo conceptual Rosário Mauriti

Representação do modelo conceptual TIWELL


A que corresponde a noção de território inovador? Há algum referencial europeu?

A designação dos territórios resultou da interpretação teórica. Classificámos como territórios inovadores aqueles que têm uma forte concentração de atividade humana e onde as pessoas com pelo menos o ensino secundário têm um peso relativo muito relevante. Têm também uma forte concentração de empresas de alta tecnologia, com capacidade de integração nos mercados internacionais.

Do ponto de vista das práticas, as pessoas estão muito orientadas para um consumo lúdico mais sofisticado, em diferentes dimensões. É neste território que encontramos também maiores recursos em termos de oferta de bens públicos no plano da saúde, da cultura, da educação e dos transportes.

 

Quais foram os territórios inovadores que identificaram?

Identificámos como territórios inovadores os municípios de Lisboa, Porto, Oeiras, Cascais e Alcochete. Estes territórios destacam-se pela forte concentração de riqueza, inovação tecnológica e qualificação da população. No entanto, coexistem nestes contextos dinâmicos segmentos populacionais em situação de grande vulnerabilidade, incluindo pessoas pobres ou muito pobres.

São, assim, também territórios expostos a fragilidades específicas, nomeadamente pela pressão associada à receção de fluxos migratórios significativos – de pessoas que procuram oportunidades, mas que, muitas vezes, enfrentam obstáculos sociais e económicos acrescidos. Oeiras foi selecionado como estudo de caso, permitindo-nos aprofundar estas tensões entre inovação, prosperidade e desigualdade.

 


Os territórios inovadores destacam-se pela concentração de riqueza, inovação tecnológica e qualificação da população, mas também estão expostos a fragilidades geradoras de desigualdades



Com que limitações se deparou este estudo?

A principal limitação do estudo prendeu-se com a pandemia de Covid-19. O projeto teve início precisamente nas vésperas da crise pandémica, o que nos obrigou a rever algumas das opções metodológicas inicialmente previstas. Após a construção do modelo e a definição dos territórios a observar, tínhamos planeado um trabalho de campo mais prolongado, com presença direta nos contextos locais – o que acabou por não ser viável.

Ainda assim, esta adversidade deu origem a uma oportunidade metodológica: desenvolvemos um sistema de observação sistemática dos territórios selecionados através da plataforma Google Street View. Trata-se de uma abordagem ainda pouco explorada em estudos socioterritoriais, mas que revelou um enorme potencial para complementar outras fontes de informação e captar dinâmicas espaciais e sociais relevantes.

 

Como funciona essa observação?

Temos um protocolo de observação do espaço público que funciona como guião de observação: se há muitos carros na rua, se os passeios são estreitos, largos ou se não existem, se há boa mobilidade pedonal, se há árvores, se há lixo ou não, se há lojas comerciais, se há serviços, estacionamento, jardins, casas em ruínas, vestígios de grafitis, etc. Fazemos um percurso de observação através do Google Maps e vamos identificando pormenores. Em cada território, extraímos de forma aleatória 20 ruas, dez das quais da zona central do município e outras dez da periferia. A observação era feita de acordo com o protocolo definido, e depois cada rua era percorrida uma série de vezes para a observarmos em pormenor.


Publicação do estudo

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Territórios de bem-estar: Assimetrias nos municípios portugueses

Rosário Mauritti (coordenadora),
Daniela Craveiro, Luís Cabrita,
Maria do Carmo Botelho,
Nuno Nunes e Sara Franco da Silva

Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, o estudo oferece uma perspetiva inovadora sobre os territórios nacionais, analisando as suas desigualdades e oportunidades à luz da questão central: “O que contribui para o bem-estar dos cidadãos?”

Este estudo encontra-se disponível para download aqui no site da Fundação (www.ffms.pt).



O sistema de observação sistemática dos territórios através do Google Street View revelou um enorme potencial, permitindo captar dinâmicas espaciais e sociais relevantes



Como foi formada a equipa multidisciplinar que esteve envolvida no projeto?

A equipa nuclear do projeto era constituída por investigadores do CIES-Iscte. Além de sociólogos, incluiu investigadores da área dos métodos e da análise de dados e, também, de história, ciência política, psicologia e economia. Além do Iscte, participaram no projeto investigadores do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS) e da Universidade de Évora.

 

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Quais os contributos que destaca deste projeto para a sociedade e para as políticas públicas?

O projeto oferece um modelo inovador para a formulação de políticas públicas, ancorado nas características sociais e económicas dos territórios. Permite avaliar em que medida existe investimento real na qualidade de vida e no bem-estar das populações que neles residem.

Sublinha a importância das condições materiais, da participação e do reconhecimento social como dimensões estruturantes do bem-estar. Ao centrar-se nos sistemas de oportunidades disponíveis nos territórios, traz contributos relevantes para a compreensão contemporânea das desigualdades sociais.

Em síntese, o estudo constrói um retrato detalhado das desigualdades à escala intranacional e contribui de forma significativa em três planos: teórico, metodológico e substantivo. Estabelece, de forma sistemática e consistente, a ligação entre as características sociodemográficas dos territórios e as condições de vida das populações.

O resultado é um instrumento que permite pensar o país para além das fronteiras administrativas convencionais, colocando no centro da análise as pessoas e os contextos em que vivem.