PLANEAMENTO DO TERRITÓRIO

Economia social em zonas rurais


Catarina Mateus 1

CATARINA MATEUS

Investigadora  Dinâmia’CET-Iscte

Doutoranda Estudos Urbanos



Duas cooperativas, em Portugal e no Equador, estão a ser analisadas no âmbito dos estudos urbanos para se compreender de que forma as suas práticas podem constituir alternativas ao modelo de desenvolvimento territorial predominante.



Qual o objetivo deste trabalho de observação e análise de uma cooperativa de Montemor-o-Novo, em Portugal, e de uma outra nos arredores de Quito, no Equador?

O objetivo desta investigação é conhecer e explorar outras formas de viver em territórios rurais ou periféricos, marginalizados, procurando alternativas ao formato geralmente aplicado através do planeamento urbano e territorial.

Atualmente, o planeamento feito pelos órgãos de gestão territorial é muito desenvolvido em torno de centralidades urbanas, quer se trate de zonas periféricas ou mesmo de zonas rurais. Há uma visão urbano-centrada, há também quem lhe chame desenvolvimentista, ou seja, assente na ideia de que os territórios têm de ser mais desenvolvidos, segundo um modelo específico – que designo na tese de “modelo de desenvolvimento capitalista”.

Segundo esse modelo, atualmente vemos nas zonas rurais em Portugal um foco na monocultura, no turismo rural e no extrativismo. Este fenómeno também se verifica no Equador, mas não é tão recente.

No entanto, diz-se das zonas periféricas que são pouco planeadas, têm pouca habitação, sem escolas, serviços públicos e outros equipamentos. Este tipo de desenvolvimento está a criar territórios bastante disfuncionais, desequilibrados e hierarquizados, não só ao nível da paisagem, mas também das populações.

A minha proposta é ver o que está a ser feito para contrariar esta tendência. Os dois casos que analiso são projetos de economia social que tentam ser autónomos do Estado e do mercado, saindo da lógica dos planos de desenvolvimento territoriais.

Este projeto de investigação pretende olhar para o que outras pessoas fazem, que impacto tem no território, como é que o habitam.

Idealmente, seria incrível transformar isto em propostas de políticas públicas para projetos de desenvolvimento territorial diferentes.

 

Pode apresentar os dois casos que acompanha?

Ambos são cooperativas, embora a de Portugal seja uma cooperativa integral e a do Equador uma cooperativa de poupança e crédito.

Uma cooperativa integral distingue-se das cooperativas uni-setoriais que apareceram muito depois do 25 de Abril e que se focavam só em agricultura, ou só em comercialização, ou só em habitação. Uma cooperativa integral tem como objetivo satisfazer todas as necessidades económicas dos seus membros. Por exemplo, a cooperativa Minga, que estou a investigar, atua na comercialização, habitação e construção, na agricultura e nos serviços.

Neste modelo prioriza-se dar autonomia aos membros para que possam desenvolver as suas próprias atividades económicas. Essa autonomia é dada através da infraestrutura de apoio oferecida pela cooperativa, desde o sistema de faturação e contabilidade a uma loja onde podem vender os seus produtos. Há toda uma rede de apoio local e houve mesmo uma altura em que faziam microcréditos. Há também, nessa rede de apoio, assessorias de economia, design, etc.

A cooperativa Minga foi criada em 2015 e hoje conta com cerca de 150 cooperantes, que usufruem diariamente dos produtos e serviços oferecidos através da sua estrutura, com base numa economia solidária e na responsabilidade social e ambiental.



Os dois casos de estudo são projetos de economia social que tentam ser autónomos do Estado e do mercado, saindo da lógica dos planos de desenvolvimento territoriais



A cooperativa no Equador é diferente?

É uma cooperativa familiar de poupanças e crédito, o que é muito comum em comunidades indígenas. A lógica é as pessoas juntarem as suas poupanças e fazerem créditos internos. Esta cooperativa não está formalizada, mas existe um regime legal para este tipo de cooperativas no Equador. Neste caso, a cooperativa é uma família composta por cerca de 90 pessoas, de três gerações. Começou por ser uma cooperativa de poupança e crédito e, neste momento, dão créditos entre 10 mil e 20 mil dólares.

Esta concessão de crédito aos membros da cooperativa/família não é um processo muito burocrático, tem poucas condições e assenta numa base de confiança. Criaram também seguros de saúde, de veículos e estão a pensar implementar um fundo de reforma.

Têm também o “fundo do bem comum”, que vai buscar inspiração à lógica popularizada durante o governo do ex-Presidente Rafael Correa (2007-2017): buen vivir – é uma postura muito ligada à lógica indígena de cooperação, de viver bem uns com os outros e com a natureza. Este fundo é para gerir os excedentes, o lucro que têm dos juros dos créditos e do depósito de dinheiro, que está num banco. A redistribuição depende de as pessoas proporem um projeto para o bem comum da família. A decisão de usar esse fundo exige que haja mais nove pessoas a estarem de acordo com o projeto proposto. Já houve projetos de reflorestação de terrenos, de distribuição de cabazes com produtos para toda a família, livros, etc. Também já houve situações de emergência, em que foi acionado esse fundo.

 

Qual é a atividade económica de cada cooperante no caso do Equador?

Os cooperantes atuam fora da cooperativa. Eles não fazem dinheiro através da cooperativa e também não são, nem pretendem ser, uma cooperativa aberta. Não querem que cresça ou extravase a família. A cooperativa baseia-se no apoio mútuo entre membros. Porém, fora da cooperativa os membros desenvolvem várias atividades individualmente, desde carpintaria, produção agrícola, arquitetura, música, gestão cultural e de processos participativos, consultoria ambiental, cerâmica, educação, etc.

 

Como se deu o encontro com o Equador?

Foi aleatório. Estava a fazer o Mestrado e podia fazer o estágio num atelier de arquitetura em qualquer lugar do mundo. Na pesquisa, encontrei o atelier de arquitetura Alborde no Equador, em Quito, com o qual me identifiquei bastante. Não conhecia nada do Equador, mas achei que o que faziam, ao nível da arquitetura, era algo de muito participativo: construíam com a comunidade, estavam envolvidos em alguns processos de reabilitação urbana para questões mais culturais, etc.

Aceitaram-me, fui para lá seis meses e aí também dei aulas, pela primeira vez, como assistente. Gostei muito. Voltei para a Dinamarca, acabei a tese e regressei ao Equador – ia trabalhar para a ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados) –, mas não consegui o visto. Então voltei a dar aulas na Universidade, em Quito, durante ano e meio.

 



Da Arquitetura aos Estudos Urbanos


No Mestrado em Design Urbano, que completou na Universidade de Aalborg, Dinamarca, Catarina Mateus realizou um trabalho de campo focado em zonas rurais, no caminho da Antropologia e bem diferente do habitual em Estudos Urbanos.
Licenciou-se em Arquitetura, na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, e a reversão do seu percurso de investigação para o urbanismo deu-se quando se apercebeu que muitos dos arquitetos que admirava “trabalham para um mercado imobiliário, com preços e condições irrealistas”.

Catarina Mateus refere que «sentia que o urbanismo em Portugal é muito à base de leis, e não está imbuído de sensibilidade social e de uma humildade» que entende serem dimensões necessárias.
«Em Portugal, há mais uma visão de pássaro e de especialista e os processos não são participativos como entendo que deveriam ser», conclui.



Como é que se passa de uma sociedade como a dinamarquesa para uma outra com características, à partida, bem diferentes em termos de organização e segurança, como o Equador?

A sociedade equatoriana, reconheço, mudou muito nos últimos anos. Na América Latina, só tinha estado no Brasil. Quando cheguei ao Equador, em 2017, senti que tudo era bastante seguro e funcionava muito bem. As melhores Universidades eram públicas, os serviços de saúde funcionavam melhor que em Portugal, houve muitas coisas que me surpreenderam pela positiva, incluindo haver a existência de muita consciência ambiental – muito mais do que cá. A consciência ambiental no Equador é muito originada por uma cultura própria das comunidades indígenas.

Entretanto também tem havido muita corrupção destas comunidades indígenas, já que a extração de petróleo e de outras matérias é feita dentro das comunidades e dos seus territórios.

Da primeira vez que lá estive, fiquei bastante impactada ao visitar a Amazónia equatoriana, entrar numa das reservas e ver painéis enormes a dizer “o petróleo traz educação à minha aldeia” ou “o petróleo traz saúde à minha aldeia”. Viam-se muitos camiões--tanque a transportar petróleo e até refinarias no meio daquela natureza toda!

Nos primeiros anos do governo de Rafael Correa, houve uma grande sintonia com a lógica indígena. O Equador foi declarado Estado plurinacional, a economia popular e familiar foi integrada nos ministérios, entre outras políticas no sentido do buen vivir.

Mais tarde esta converteu-se numa política que alguns autores chamam de neo--desenvolvimentarismo: melhorar as condições de vida das pessoas, mas através da extração de recursos.

Dou um exemplo: era preciso cuidar da Amazónia e o presidente equatoriano lançou um pedido de apoio internacional para esse fim. Como nenhuma instituição internacional financiou essa proteção e recuperação dos recursos naturais, decidiu que, para dar melhores condições de vida às pessoas no Equador, seria necessário explorar a Amazónia. Estive lá entre outubro de 2023 e junho deste ano (2024) e notei diferença. De certo modo, a sociedade tornou-se mais violenta… Nos últimos anos tem havido muita instabilidade política, também com a entrada do FMI, e isto, de alguma forma, facilitou a instalação de redes de narcotráfico que, junto com desastres naturais e má gestão pública, têm gerado um clima de instabilidade social e económica. Não tem nada que ver com o que encontrei na primeira vez, em 2017.

 

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Quais foram os métodos utilizados no seu trabalho de investigação?

Fiz questionários, fiz entrevistas, mas foi pela observação participante que obtive mais dados. A experiência foi muito rica e fui registando quase tudo num diário de campo, o que me permitiu criar relações de confiança com as pessoas, e perceber que falam de uma maneira, mas, depois, a ação por vezes é outra.

A perceção das pessoas não é, muitas vezes, a mesma que o entendimento da academia ou o meu entendimento. A observação participante permite perceber as incoerências, por exemplo, entre os aspetos pessoais e os da cooperativa.

 

Que resultados podemos esperar deste projeto?

Creio que vamos caminhar no sentido da criação de propostas de gestão mais local, mais autónomas, mais autogeridas, mais cooperantes e mais autossustentáveis. Não sei ainda se neste projeto de investigação vou ter tempo para pensar como isto poderia ser traduzido em propostas concretas para o planeamento territorial, mas creio que vou ter resultados interessantes para questões como “Que lógicas, valores e ferramentas as economias alternativas já estão a criar para os seus membros e que podem ser escaladas e multiplicadas?”

Espero que esta investigação possa ter impacto nas políticas públicas que são pensadas e implementadas nas zonas rurais, no sentido de promover estilos de vida mais sustentáveis.

 

O projeto está a ser desenvolvido no Dinâmia’CET-Iscte. Como aconteceu este encontro?

Foi-me concedida uma bolsa da FCT gerida pelo Dinâmia’CET. É até curioso pois candidatei-me várias vezes diretamente, mas fui sendo rejeitada porque a minha investigação não é simplesmente arquitetura, não é urbanismo, não é sociologia, não é economia… é muito transversal. Felizmente, esta Unidade de Investigação do Iscte abriu candidaturas para quatro bolsas e consegui uma.

É muito importante que os centros de investigação possam receber projetos através de bolsas de que dispõem. Caso não tivesse acontecido assim, eu teria de mudar muito a investigação para a encaixar numa categoria. É muito importante existir uma descentralização na atribuição de bolsas, para que os centros de investigação as possam gerir, no sentido de permitir transversalidade nos projetos e temáticas que não se encaixem rigorosamente nas categorias-padrão.