Investigadora Dinâmia’CET-Iscte
Doutoranda Estudos Urbanos
Qual o objetivo deste trabalho de observação e análise de uma cooperativa de Montemor-o-Novo, em Portugal, e de uma outra nos arredores de Quito, no Equador?
O objetivo desta investigação é conhecer e explorar outras formas de viver em territórios rurais ou periféricos, marginalizados, procurando alternativas ao formato geralmente aplicado através do planeamento urbano e territorial.
Atualmente, o planeamento feito pelos órgãos de gestão territorial é muito desenvolvido em torno de centralidades urbanas, quer se trate de zonas periféricas ou mesmo de zonas rurais. Há uma visão urbano-centrada, há também quem lhe chame desenvolvimentista, ou seja, assente na ideia de que os territórios têm de ser mais desenvolvidos, segundo um modelo específico – que designo na tese de “modelo de desenvolvimento capitalista”.
Segundo esse modelo, atualmente vemos nas zonas rurais em Portugal um foco na monocultura, no turismo rural e no extrativismo. Este fenómeno também se verifica no Equador, mas não é tão recente.
No entanto, diz-se das zonas periféricas que são pouco planeadas, têm pouca habitação, sem escolas, serviços públicos e outros equipamentos. Este tipo de desenvolvimento está a criar territórios bastante disfuncionais, desequilibrados e hierarquizados, não só ao nível da paisagem, mas também das populações.
A minha proposta é ver o que está a ser feito para contrariar esta tendência. Os dois casos que analiso são projetos de economia social que tentam ser autónomos do Estado e do mercado, saindo da lógica dos planos de desenvolvimento territoriais.
Este projeto de investigação pretende olhar para o que outras pessoas fazem, que impacto tem no território, como é que o habitam.
Idealmente, seria incrível transformar isto em propostas de políticas públicas para projetos de desenvolvimento territorial diferentes.
Pode apresentar os dois casos que acompanha?
Ambos são cooperativas, embora a de Portugal seja uma cooperativa integral e a do Equador uma cooperativa de poupança e crédito.
Uma cooperativa integral distingue-se das cooperativas uni-setoriais que apareceram muito depois do 25 de Abril e que se focavam só em agricultura, ou só em comercialização, ou só em habitação. Uma cooperativa integral tem como objetivo satisfazer todas as necessidades económicas dos seus membros. Por exemplo, a cooperativa Minga, que estou a investigar, atua na comercialização, habitação e construção, na agricultura e nos serviços.
Neste modelo prioriza-se dar autonomia aos membros para que possam desenvolver as suas próprias atividades económicas. Essa autonomia é dada através da infraestrutura de apoio oferecida pela cooperativa, desde o sistema de faturação e contabilidade a uma loja onde podem vender os seus produtos. Há toda uma rede de apoio local e houve mesmo uma altura em que faziam microcréditos. Há também, nessa rede de apoio, assessorias de economia, design, etc.
A cooperativa Minga foi criada em 2015 e hoje conta com cerca de 150 cooperantes, que usufruem diariamente dos produtos e serviços oferecidos através da sua estrutura, com base numa economia solidária e na responsabilidade social e ambiental.
A cooperativa no Equador é diferente?
É uma cooperativa familiar de poupanças e crédito, o que é muito comum em comunidades indígenas. A lógica é as pessoas juntarem as suas poupanças e fazerem créditos internos. Esta cooperativa não está formalizada, mas existe um regime legal para este tipo de cooperativas no Equador. Neste caso, a cooperativa é uma família composta por cerca de 90 pessoas, de três gerações. Começou por ser uma cooperativa de poupança e crédito e, neste momento, dão créditos entre 10 mil e 20 mil dólares.
Esta concessão de crédito aos membros da cooperativa/família não é um processo muito burocrático, tem poucas condições e assenta numa base de confiança. Criaram também seguros de saúde, de veículos e estão a pensar implementar um fundo de reforma.
Têm também o “fundo do bem comum”, que vai buscar inspiração à lógica popularizada durante o governo do ex-Presidente Rafael Correa (2007-2017): buen vivir – é uma postura muito ligada à lógica indígena de cooperação, de viver bem uns com os outros e com a natureza. Este fundo é para gerir os excedentes, o lucro que têm dos juros dos créditos e do depósito de dinheiro, que está num banco. A redistribuição depende de as pessoas proporem um projeto para o bem comum da família. A decisão de usar esse fundo exige que haja mais nove pessoas a estarem de acordo com o projeto proposto. Já houve projetos de reflorestação de terrenos, de distribuição de cabazes com produtos para toda a família, livros, etc. Também já houve situações de emergência, em que foi acionado esse fundo.
Qual é a atividade económica de cada cooperante no caso do Equador?
Os cooperantes atuam fora da cooperativa. Eles não fazem dinheiro através da cooperativa e também não são, nem pretendem ser, uma cooperativa aberta. Não querem que cresça ou extravase a família. A cooperativa baseia-se no apoio mútuo entre membros. Porém, fora da cooperativa os membros desenvolvem várias atividades individualmente, desde carpintaria, produção agrícola, arquitetura, música, gestão cultural e de processos participativos, consultoria ambiental, cerâmica, educação, etc.
Como se deu o encontro com o Equador?
Foi aleatório. Estava a fazer o Mestrado e podia fazer o estágio num atelier de arquitetura em qualquer lugar do mundo. Na pesquisa, encontrei o atelier de arquitetura Alborde no Equador, em Quito, com o qual me identifiquei bastante. Não conhecia nada do Equador, mas achei que o que faziam, ao nível da arquitetura, era algo de muito participativo: construíam com a comunidade, estavam envolvidos em alguns processos de reabilitação urbana para questões mais culturais, etc.
Aceitaram-me, fui para lá seis meses e aí também dei aulas, pela primeira vez, como assistente. Gostei muito. Voltei para a Dinamarca, acabei a tese e regressei ao Equador – ia trabalhar para a ACNUR (Agência da ONU para os Refugiados) –, mas não consegui o visto. Então voltei a dar aulas na Universidade, em Quito, durante ano e meio.
No Mestrado em Design Urbano, que completou na Universidade de Aalborg, Dinamarca, Catarina Mateus realizou um trabalho de campo focado em zonas rurais, no caminho da Antropologia e bem diferente do habitual em Estudos Urbanos.
Licenciou-se em Arquitetura, na Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa, e a reversão do seu percurso de investigação para o urbanismo deu-se quando se apercebeu que muitos dos arquitetos que admirava “trabalham para um mercado imobiliário, com preços e condições irrealistas”.
Catarina Mateus refere que «sentia que o urbanismo em Portugal é muito à base de leis, e não está imbuído de sensibilidade social e de uma humildade» que entende serem dimensões necessárias.
«Em Portugal, há mais uma visão de pássaro e de especialista e os processos não são participativos como entendo que deveriam ser», conclui.
Como é que se passa de uma sociedade como a dinamarquesa para uma outra com características, à partida, bem diferentes em termos de organização e segurança, como o Equador?
A sociedade equatoriana, reconheço, mudou muito nos últimos anos. Na América Latina, só tinha estado no Brasil. Quando cheguei ao Equador, em 2017, senti que tudo era bastante seguro e funcionava muito bem. As melhores Universidades eram públicas, os serviços de saúde funcionavam melhor que em Portugal, houve muitas coisas que me surpreenderam pela positiva, incluindo haver a existência de muita consciência ambiental – muito mais do que cá. A consciência ambiental no Equador é muito originada por uma cultura própria das comunidades indígenas.
Entretanto também tem havido muita corrupção destas comunidades indígenas, já que a extração de petróleo e de outras matérias é feita dentro das comunidades e dos seus territórios.
Da primeira vez que lá estive, fiquei bastante impactada ao visitar a Amazónia equatoriana, entrar numa das reservas e ver painéis enormes a dizer “o petróleo traz educação à minha aldeia” ou “o petróleo traz saúde à minha aldeia”. Viam-se muitos camiões--tanque a transportar petróleo e até refinarias no meio daquela natureza toda!
Nos primeiros anos do governo de Rafael Correa, houve uma grande sintonia com a lógica indígena. O Equador foi declarado Estado plurinacional, a economia popular e familiar foi integrada nos ministérios, entre outras políticas no sentido do buen vivir.
Mais tarde esta converteu-se numa política que alguns autores chamam de neo--desenvolvimentarismo: melhorar as condições de vida das pessoas, mas através da extração de recursos.
Dou um exemplo: era preciso cuidar da Amazónia e o presidente equatoriano lançou um pedido de apoio internacional para esse fim. Como nenhuma instituição internacional financiou essa proteção e recuperação dos recursos naturais, decidiu que, para dar melhores condições de vida às pessoas no Equador, seria necessário explorar a Amazónia. Estive lá entre outubro de 2023 e junho deste ano (2024) e notei diferença. De certo modo, a sociedade tornou-se mais violenta… Nos últimos anos tem havido muita instabilidade política, também com a entrada do FMI, e isto, de alguma forma, facilitou a instalação de redes de narcotráfico que, junto com desastres naturais e má gestão pública, têm gerado um clima de instabilidade social e económica. Não tem nada que ver com o que encontrei na primeira vez, em 2017.
Quais foram os métodos utilizados no seu trabalho de investigação?
Fiz questionários, fiz entrevistas, mas foi pela observação participante que obtive mais dados. A experiência foi muito rica e fui registando quase tudo num diário de campo, o que me permitiu criar relações de confiança com as pessoas, e perceber que falam de uma maneira, mas, depois, a ação por vezes é outra.
A perceção das pessoas não é, muitas vezes, a mesma que o entendimento da academia ou o meu entendimento. A observação participante permite perceber as incoerências, por exemplo, entre os aspetos pessoais e os da cooperativa.
Que resultados podemos esperar deste projeto?
Creio que vamos caminhar no sentido da criação de propostas de gestão mais local, mais autónomas, mais autogeridas, mais cooperantes e mais autossustentáveis. Não sei ainda se neste projeto de investigação vou ter tempo para pensar como isto poderia ser traduzido em propostas concretas para o planeamento territorial, mas creio que vou ter resultados interessantes para questões como “Que lógicas, valores e ferramentas as economias alternativas já estão a criar para os seus membros e que podem ser escaladas e multiplicadas?”
Espero que esta investigação possa ter impacto nas políticas públicas que são pensadas e implementadas nas zonas rurais, no sentido de promover estilos de vida mais sustentáveis.
O projeto está a ser desenvolvido no Dinâmia’CET-Iscte. Como aconteceu este encontro?
Foi-me concedida uma bolsa da FCT gerida pelo Dinâmia’CET. É até curioso pois candidatei-me várias vezes diretamente, mas fui sendo rejeitada porque a minha investigação não é simplesmente arquitetura, não é urbanismo, não é sociologia, não é economia… é muito transversal. Felizmente, esta Unidade de Investigação do Iscte abriu candidaturas para quatro bolsas e consegui uma.
É muito importante que os centros de investigação possam receber projetos através de bolsas de que dispõem. Caso não tivesse acontecido assim, eu teria de mudar muito a investigação para a encaixar numa categoria. É muito importante existir uma descentralização na atribuição de bolsas, para que os centros de investigação as possam gerir, no sentido de permitir transversalidade nos projetos e temáticas que não se encaixem rigorosamente nas categorias-padrão.