Professora Iscte Ciências Sociais e Humanas
Investigadora CIS-Iscte
O objetivo deste projeto é avaliar a aplicação de um modelo de acolhimento familiar para crianças. Em que consiste esse modelo?
Existe um modelo de prática no acolhimento familiar, designado MIAF® (Modelo Integrado de Acolhimento Familiar), concebido para apoiar os profissionais que intervêm no sistema de promoção e proteção de crianças. No desenvolvimento do modelo, estiveram envolvidos investigadores e técnicos que operam no terreno.
O projeto de investigação All4Children procura avaliar a implementação inicial deste modelo integrado em Portugal, através de uma abordagem colaborativa e multidisciplinar. Por um lado, estamos a fazer uma avaliação do processo para compreender se o modelo está a ser aplicado com fidelidade, se é útil e adequado, e quais os obstáculos ou facilitadores da sua aplicação. Por outro lado, vamos avaliar os resultados da implementação, para perceber se cumpre a sua missão: garantir a segurança, estabilidade e bem-estar das crianças, bem como das famílias de acolhimento.
O All4Children, coordenado pelo Iscte e iniciado em 2023, trará os primeiros dados sobre a aplicação prática do MIAF® em Portugal.
Em Portugal, o acolhimento familiar ainda não é a resposta predominante para crianças em risco ou vítimas de negligência. Porquê?
Durante muito tempo, Portugal manteve uma forte dependência do acolhimento residencial. O acolhimento familiar apenas foi estabelecido como medida preferencial para crianças até aos seis anos de idade muito recentemente através de alterações legislativas.
Com estas mudanças, surgiu a necessidade de desenvolver modelos de intervenção que orientem os profissionais no terreno. Ainda assim, o acolhimento familiar continua a ser uma modalidade residual em comparação com o acolhimento residencial.
Na região de Lisboa, a Santa Casa da Misericórdia (SCML), em conjunto com a Casa Pia, assumiu a missão de aumentar o número de famílias de acolhimento. Em 2017, de acordo com um relatório do Instituto da Segurança Social, I.P., não havia qualquer criança em acolhimento familiar na região. Para responder a este desafio, a SCML uniu-se ao Laboratório Colaborativo ProChild, focado no combate à pobreza e exclusão social na infância, para criar o MIAF®. Hoje, Lisboa é uma das zonas do país com maior crescimento nesta resposta.
Quais são as principais etapas do modelo de acolhimento familiar?
O acolhimento familiar assenta num conjunto de etapas fundamentais, que vão desde o recrutamento de famílias potencialmente aptas, processo que implica a sensibilização da comunidade, até à saída da criança para uma solução definitiva. Entre esses momentos, incluem-se a formação inicial dos candidatos, a avaliação e seleção das famílias, a análise da compatibilidade entre a criança e a família escolhida, a transição para o novo ambiente e o acompanhamento contínuo da família de acolhimento. O processo termina com a definição de uma solução estável para a criança, que pode passar pelo regresso à família biológica, pela adoção ou por outra medida prevista no seu projeto de vida.
O MIAF® percorre todas estas etapas e inclui ferramentas específicas para apoiar os profissionais em cada uma delas. O All4Children dedica-se à avaliação da sua implementação, bem como da utilidade e adequação dessas ferramentas.
A realidade nacional difere da de outros países?
Sim. Ao contrário de grande parte dos países ocidentais, em Portugal, a maioria das crianças afastadas das suas famílias encontra-se em acolhimento residencial. Apenas uma minoria está integrada em famílias de acolhimento, ou seja, famílias certificadas sem laços de sangue com a criança.
Esta situação aproxima-se à de alguns países da Europa de Leste. Contudo, a investigação internacional tem demonstrado que o acolhimento familiar oferece uma proteção superior, sobretudo para bebés e crianças pequenas, que necessitam de cuidados individualizados, sensíveis e afetuosos, essenciais ao seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social.
Quais são as situações que motivam a intervenção do Estado e o acolhimento de uma criança?
A razão mais comum é a negligência parental. Em menor escala, surgem também casos de abuso físico e sexual, entre outras situações de risco.
É fundamental que a investigação nacional produza dados sobre a qualidade das respostas de acolhimento, contribuindo para o desenvolvimento de políticas e práticas mais eficazes. O projeto All4Children procura colmatar essa lacuna, produzindo conhecimento científico que apoie a tomada de decisão e promova melhores soluções para as crianças.
É possível fazer um balanço destes primeiros anos de aplicação do MIAF®? Que melhorias se notam?
Sim, ainda que preliminarmente, através do projeto All4Children, estamos a recolher dados junto de profissionais, famílias e crianças, com o apoio de quatro instituições localizadas no norte e centro do país. Os primeiros resultados sugerem que o MIAF® é um modelo de prática promissor.
O acolhimento familiar deve continuar a ser reforçado e expandido a todo o país, especialmente a crianças até aos seis anos, um período crítico para o seu desenvolvimento, em que estabilidade, previsibilidade e qualidade dos cuidados são determinantes para a criação de vínculos seguros.
Que alterações legais são necessárias? Já há sinais de mudança?
Sim. O Parlamento português aprovou recentemente a possibilidade de as famílias de acolhimento poderem adotar. Esta decisão requer uma reflexão profunda sobre critérios, processos e impactos para todas as partes envolvidas.
Importa também repensar o apoio às famílias alargadas que acolhem crianças em perigo. Em Portugal, os familiares já podem ser considerados famílias de acolhimento, o que reforça a necessidade de acompanhamento especializado e práticas centradas no superior interesse da criança, independentemente do tipo de acolhimento.
Como se estão a recolher os dados?
O All4Children segue um desenho longitudinal. Antes da colocação da criança, recolhemos dados junto dos profissionais e das famílias desde as sessões informativas ao processo de ligação/conexão com a criança.
Depois da integração da criança na família, continuamos este trabalho trimestralmente, com as famílias, os técnicos e as próprias crianças, monitorizando a evolução do seu bem-estar.
A nossa metodologia é mista: combinamos dados quantitativos e qualitativos, utilizando uma abordagem multimétodo.
Como tem sido a colaboração entre investigadores e instituições?
A equipa do All4Children, que inclui investigadores do CIS-Iscte, da Universidade do Minho, Universidade Católica, Universidade Lusófona e do Laboratório Colaborativo ProChild, mantém uma relação estreita com as instituições de acolhimento.
Vamos partilhando resultados preliminares com os profissionais e discutindo como os dados podem informar a prática e contribuir para a melhoria contínua do modelo.
As casas de acolhimento ainda têm um papel?
Sim, e continuarão a ter. Há crianças para quem o acolhimento familiar não é adequado, e as casas de acolhimento continuam a ser necessárias nesses casos.
A desinstitucionalização visa garantir que as crianças em perigo têm acesso a cuidados verdadeiramente familiares que lhes proporcionem um lar. Sempre que possível, pretende-se evitar que entrem no sistema. Quando isso acontece, é essencial que seja encontrada uma solução permanente com a maior brevidade possível.
No All4Children, acreditamos que só através da conjugação de conhecimento científico com a experiência prática dos profissionais e as perspetivas das crianças e das famílias, é possível construir respostas eficazes e centradas nas necessidades reais.
De que forma os resultados do All4Children podem influenciar as políticas públicas?
Desde logo, é fundamental aumentar o conhecimento da população sobre o acolhimento familiar. Embora existam dados robustos sobre os seus benefícios, ainda há muito desconhecimento na sociedade e até entre profissionais do setor. É urgente melhorar a comunicação sobre este tema.
Em Portugal, mais de 80% das crianças afastadas das suas famílias estão em acolhimento residencial, e apenas pouco mais de 4% em acolhimento familiar. Se queremos inverter esta realidade até 2030, como estabelecido, é essencial um esforço forte de sensibilização e informação.
Além disso, os dados do All4Children permitirão identificar áreas prioritárias para o desenvolvimento de respostas, nomeadamente ao nível da formação e acompanhamento das famílias, garantindo não só o bem-estar das crianças, mas também o das famílias que as acolhem.